Albertina reclina sobre Eça, no centro da sua redondela de verdura. Não. Este relvado é mais amplo; estende-se onde antes passava a Rua do Alecrim, plano, sem inclinação. À esquerda, onde estavam os bombeiros, um muro; para a frente algumas árvores e pedaços de pedra no chão. Albertina sente frio nas costas. Eça… onde está Eça?

Apercebe-se da falta do volume maciço do escritor ao mesmo tempo que repara no busto assente no chão. A cabeça franzina parece encolher-se nas vestes excessivamente encorpadas; cabisbaixo, Eça fita a gravilha do passeio com a mesma atenção que outrora dedicara a ela, Albertina, detentora da verdade. Ou da nudez? A nudez representa a verdade, ouviu alguém dizer há muitos anos, pouco depois de começar a sua servitude escultórica. E o manto tem de ser diáfano, porque a fantasia não pode esconder por completo a verdade, apenas rodeá-la, sugestivamente, de carácter literário.

Estátua original de Eça de Queiroz no Museu da Cidade, em partes e ainda com marcas de vandalismo.

Arrepiada com o vento cortante desta manhã de inverno, Albertina sonha com o dia em que a fantasia se sobreporá à verdade e a cobrirá de vestes adequadas ao clima lisboeta.

Ainda assim, esta mudança de casa veio em boa hora. Albertina recorda com horror o ruído seco dos seus dedos de lioz a partir, as mãos a agarrá-la, a mistura nauseabunda de álcool e urina que paira no ar todos os fins de semana. Quantas vezes se repetiu esta cena? Perdi a conta aos dedos que perdi e faltam-me os dedos para contar pelas mãos.

A metade inferior de Eça é um peso morto atrás de si.

Albertina sabe que está suja de tinta e espera pacientemente pelo seu restauro. Vêm pessoas fotografá-la de vez em quando, indiferentes à sua apresentação pouco cuidada, ou talvez atraídas por ela. Os pavões circulam pelo relvado. Um pavão branco, da cor de Albertina antes de ser pintada, levanta fastidiosamente a cauda para não roçar no chão.

Que jardim é este, com a grande casa branca reminiscente de um velho palácio, e o moderno pavilhão envidraçado? Albertina não se recorda de ser retirada do Largo Barão de Quintela, nem da viagem para este local onde agora se encontra, depositada no relvado, Eça para um lado, o pedestal rochoso para outro.

Vou fingir que estou de férias no campo.

No Largo Barão de Quintela, o seu duplo de bronze observa o trânsito que sobe e desce a Rua do Alecrim. A patine cinzenta do metal passa despercebida contra o verde acastanhado das palmeiras.

Vista parcial da estátua actual em bronze com a Rua do Alecrim ao fundo.
Isabel Brison Voltar à página inicial